O Capacitismo Velado: Minha Carta Aberta a Felipe Neto
O Capacitismo Velado: Minha Carta Aberta a Felipe Neto
“Olhem… Esse pé. Não, sério. Como descrever? Olha a Luna. O bolo. Meu Deus. O outro pé, gente. Eu tô completamente encantada. Sério. Olha Hogwarts. E o outro de Friends, olha! I’ll be there for you. Ai, meu Deus do céu! Não, é brincadeira isso. Sério, é muito talento pra uma pessoa só, gente. Pelo amor de Deus.”
Mas agora vem a parte mais impressionante: a estilista Juliana… Ela é PCD. Pessoa com deficiência. E… ela fez essas artes, esses tênis maravilhosos. Vou botar uma foto pra vocês.
Essas foram exatamente as palavras que você, Felipe, usou no dia 14 de julho de 2021, quando postou meus tênis nos seus stories. Eu me lembro de cada segundo daquele momento. Eu estava tão feliz, tão emocionada por ter sido notada por alguém que eu admirava há tantos anos. Eu te acompanhava desde os tempos do canal Não Faz Sentido, desde aquele vídeo famoso sobre Crepúsculo. Eu acompanhei sua carreira crescer, vi as polêmicas, vi você se reinventar. Sempre te apoiei.
Eu sonhava tanto, mas tanto, em um dia trabalhar com a Play 9. Acreditava de verdade que seria um lugar seguro, inclusivo, que abraçaria pessoas como eu. Eu tinha fé nisso porque você sempre falava sobre inclusão, sobre dar espaço, sobre ser a diferença que queria ver no mundo. E naquele momento eu não percebi o nível de capacitismo presente na sua fala. Só depois, com o tempo, eu entendi.
E é aí que mora a diferença. Aquele vídeo está salvo até hoje nos meus destaques no Instagram, qualquer pessoa pode ver. É só procurar pelo nome “Felipe Neto”. Um pouco antes dele, tem outro destaque com o Fábio Porchat. Ele também recebeu um tênis meu, um presente feito à mão, inspirado no Olaf – personagem que ele dubla e que eu e minhas filhas amamos. Eu consegui contato com ele, perguntei o número do sapato, pensei em cada detalhe, pintei com todo carinho. Dois dias depois, quando ele postou nos stories, ele apenas agradeceu. Disse que era lindo, que tinha amado. Simples assim. Nenhuma menção à minha deficiência.
Você, Felipe, não. Você sentiu a necessidade de reduzir todo o meu talento à minha condição física. Como se o fato de eu ser artista só tivesse valor porque eu sou PCD. Isso é o que a mídia sempre fez comigo. Quando apareci pela primeira vez num portal grande, a UOL, o título era “Estilista sem as mãos quer ser fada madrinha das noivas”. A minha deficiência vinha antes do meu nome, antes do meu trabalho, antes de quem eu sou. Como se o que eu faço só fosse especial porque “ah, olha só, ela não tem as mãos”.
Isso aconteceu em 2015, de novo no programa da Fátima Bernardes – de forma mais velada, mas aconteceu –, e no Rodrigo Faro, da forma mais explícita possível. Depois dessa fase, quando comecei a ganhar notoriedade, implorei para minha assessoria de imprensa nunca mais permitir que minha deficiência fosse usada como chamariz de matéria.
E então vem você, Felipe Neto, e faz exatamente o que eu lutei anos para desconstruir. Pega um presente meu e transforma em troféu da sua “bondade”. Usa a foto do tênis, a foto minha sem as mãos, para as pessoas entenderem a “maravilha” que você estava enaltecendo. Se fosse só talento, você não teria postado aquela foto. Você sabia que estava errado, tanto que não teve coragem de falar a frase completa. Mas a mensagem estava lá: “Olha só, gente, uma deficiente fez isso”.
Tudo bem, eu não tinha a visão que tenho hoje. A gente aprende errando. E é por isso que escrevo essa carta: porque eu espero que chegue até você, que você entenda o erro e tenha a humildade de pedir desculpas.
Quando pedi para entrar na Play 9, não foi por fama ou dinheiro. Foi porque eu acreditava que com a força da sua voz, da sua empresa, talvez a minha também fosse ouvida. Eu tinha sonhos grandes, queria quebrar barreiras que sozinha eu sabia que não conseguiria derrubar, porque o preconceito neste país é brutal. Eu te pedi ajuda porque achei que você se importava.
E sim, pedi para sair da Play 9 – e digo isso com orgulho. Pedi para entrar porque acreditava em vocês. Pedi para sair porque percebi que estava sendo usada. E vou explicar por quê.
Nosso relacionamento ficou mais próximo em novembro de 2021, quando você me convidou para desenhar uma roupa pra sua live da Americanas. Eu fiquei radiante, mesmo exausta de dor, me esforcei para fazer aquela jaqueta exclusiva pra você. A Bruna, sua namorada na época, também pediu um look, e fiz um corset lindo, sob medida. Você me recebeu na sua casa, conversamos sobre minha vida, minha saúde, sobre a cannabis medicinal que eu usava. Eu me senti acolhida. Só que na live, a jaqueta que eu fiz com tanto carinho não foi usada por você. Apenas a Bruna vestiu minha criação. Eu fui à live como convidada, conheci outros nomes da agência, mas fiquei com aquela sensação estranha de que eu estava ali só pra foto, pra mostrar o quão “legal” e “inclusivo” você era.
Um ano depois, em julho de 2022, veio a festa de três anos da Play 9. Esse dia ficou marcado. Meu filho Miguel tinha dez anos, era seu fã de verdade, cresceu assistindo sua saga Minecraft. Ele sonhava te conhecer. Eu pedi, implorei à sua equipe para levá-lo, mesmo sabendo que era um evento sem crianças. E vocês autorizaram. Foi um dos dias mais felizes da vida dele. Ele falava pra todo mundo: “Conheci o Felipe Neto!”.
Na festa, eu observei cada detalhe. Você estava simpático, cercado de gente, vestido da cabeça aos pés com marcas caras. Me lembro do seu tênis da Dolce & Gabbana. Eu cheguei perto de você e falei no seu ouvido: “Felipe, essa marca é super problemática. Já foi acusada de gordofobia, homofobia, machismo. Estuda melhor antes de ostentar tanto.” Você se surpreendeu, disse que não sabia, que ia pesquisar. Até te mandei um link depois, por direct.
Mas a impressão que ficou foi que você não se importava de verdade. Pouco tempo depois, vi você viajando, indo ao estúdio do Harry Potter, reclamando que podia ter ido “mais temático”. Eu pensei: “Mas você tem um tênis único no mundo, feito por mim, fã do universo, e nunca usou”. Eu comecei a perceber que minha arte não tinha valor pra você. Eu era só uma peça bonita no discurso de “olhem como eu sou inclusivo”.
Dentro da Play 9, tudo parecia ter um peso diferente quando o projeto era meu.
Parceria com a Disney? “Muito difícil.”
Com a C&A? “Complicado.”
Mas, dias depois, eu via outro influenciador, com números menores que os meus, fechando com essas mesmas marcas. Foi aí que percebi o que nunca ninguém disse abertamente, mas que eu ouvi dentro da empresa: eu era a “cota PCD”. Não estava ali porque acreditavam no meu potencial, mas porque minha imagem rendia manchete bonita de inclusão.
Quando comecei a questionar esse tratamento, adivinha?
Os trabalhos sumiram.
Dois meses sem uma única proposta de publicidade. Até que, do nada, me ofereceram uma campanha de jogos de azar — a mesma que você, Felipe, fazia. E naquele momento eu entendi tudo. Entendi que ética nunca foi prioridade. Que a voz que você usava para inspirar milhões era a mesma que aceitava qualquer contrato desde que o valor fosse bom.
Foi ali que decidi pedir demissão. Porque eu não ia ser parte de uma empresa que lucrava com o adoecimento de famílias brasileiras, que se vendia como exemplo de diversidade enquanto me usava para lacrar com a minha deficiência — algo que nunca deveria ter sido reduzido à minha identidade profissional. Eu sou muito mais que isso. Sempre fui.
Eu pedi demissão e saí de cabeça erguida. Saí sabendo que tinha feito a minha parte, que não me vendi, que não deixei que o sistema me moldasse para caber na vitrine de “diversidade” da Play 9. Mesmo assim, mantive o respeito. Continuei em contato com alguns gestores e funcionários, porque nunca foi sobre rancor, foi sobre dignidade.
Mas, meses depois, quando o caso da Bell explodiu, tudo voltou como uma avalanche. Julho de 2024. Meus filhos dentro de casa, de férias, e eu recebendo mensagens de ódio que não desejo para ninguém. Ameaças de morte, gente me dizendo para me matar, mensagens capacitistas num nível que eu nunca tinha visto na vida. Tudo isso porque uma influenciadora da sua agência, Felipe, pegou áudios meus, distorceu cada palavra, construiu uma narrativa falsa para se passar de vítima, e soltou essa bomba nas redes.

E eu, desesperada, pedi ajuda. Fiz vídeo no meu feed pedindo para as pessoas te marcarem, te mandei direct aos prantos, mandei prints das ameaças contra mim e contra meus filhos. Marquei você, marquei o Serrinh, marquei o Marcos Vinícius, marquei todos os sócios da Play 9.
E vocês viram. Vocês souberam. E vocês ignoraram. Porque, afinal, eu já não era interessante para a empresa. Eu era só a PCD que saiu, enquanto a “padrão” da agência continuava rendendo contratos milionários, afinal porque me ajudar?
Mas, Felipe, antes que você pense que tudo isso é uma carta de ódio, eu preciso te dizer: não é. Isso aqui é uma tentativa de fazer diferente, de parar o ciclo de ódio que quase me destruiu. Foi me pedido que eu lutasse com amor, e é com amor no peito que eu te escrevo agora. Eu não te odeio. Eu te perdoo.
Sabe por quê? Porque no fundo eu sei que você também é só uma pessoa que aprendeu que o sucesso só chega para quem joga o jogo do sistema, um jogo feito para pessoas “padrões”.
Você lutou para estar onde está, você segurou muita coisa calado para proteger a sua família, para não perder tudo o que construiu. Talvez, se eu tivesse as mesmas oportunidades que você teve, eu também teria feito as mesmas escolhas. A diferença é que eu nunca tive essas chances – e quando eu tive uma brecha, ela veio cheia de condicionais: ser engraçadinha, ser a “história inspiradora”, ser a cota. Nunca ser só a artista.
E está tudo bem, eu não tenho a pretensão de te julgar. A minha percepção de você é baseada no que eu vivi, e pode até ser que parte do que eu senti não seja verdade. Mas uma parte é. Você sabe que é.
Por isso, se você chegou até aqui, eu te peço uma coisa: mostra que você é o ser humano que diz ser. Se retrate. Peça desculpas. Ajude a fazer diferente dessa vez.
Use a sua voz, a mesma que já gritou contra o crime de ódio quando ele te atingiu, para gritar agora por mim – e por tanta gente que está sendo destruída por esses linchamentos virtuais. Ajude a pressionar para que o Brasil tenha uma lei que puna com mais força crimes de ódio e perseguição na internet.
Porque você sabe, Felipe, que tudo que fizeram comigo jamais teria acontecido com uma estilista padrão. Isso é crime de ódio, é capacitismo velado, é o mesmo preconceito que você deixou escapar na primeira vez que falou de mim. Mude a sua fala. Mude a postura. Seja grande de verdade
O lema dessa campanha é simples, Felipe:

E eu te pergunto: como você quer viver? Em que mundo você quer que seus sobrinhos cresçam? Num mundo alimentado pelo ódio ou num mundo construído com amor e respeito por todos?
Junte-se a mim para tentar fazer um mundo melhor para eles. Porque pra nós… bom, tanto eu quanto você já conhecemos a dor, já enfrentamos o ódio e sobrevivemos a ele. Mas e os que não sobreviveram? E os que estão sofrendo agora, sem voz, sem esperança?
Quando tentei tirar a própria vida, em abril deste ano, e voltei… entendi que não havia mais outra escolha. A única saída era lutar. É isso que estou fazendo agora. Lute comigo.
Espero de coração que você leia esta carta e entenda, mesmo que rapidamente, um pouco do que eu vivi e do que preciso fazer agora para que nada parecido volte a acontecer com ninguém.
A minha história precisa ser ouvida, e a justiça, feita.
Muito obrigada.
Escrevo com carinho, sem nenhum ódio no coração, apenas com amor e paz.
Mas é essencial que as pessoas compreendam a gravidade do que aconteceu.
Obrigada.
Um grande abraço,
Juliana Pereira dos Santos
Estilista Juliana
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